E no princípio era... Uma caixa de bagunças no sótão da casa de um roqueiro em Londres. Até pouco tempo atrás, faltava na cultura pop um livro autobiográfico de uma das figuras mais marcantes da música (e além) dos anos 1990 para cá. Não falta mais. Em 2022, o dândi Jarvis Cocker, fundador da seminal banda britânica Pulp, lançou na Inglaterra Good Pop, Bad Pop, um livro de memórias divertidíssimo e criativo como o seu autor. Agora, a novidade também está saindo no Brasil, pela editora Terreno Estranho.
Cocker sempre foi um contador de histórias. Com seu jeitão de amigo inteligente e exótico, “diferentão” mesmo, fez do Pulp uma das bandas mais importantes do igualmente importante movimento britpop, junto com Blur e Oasis, ajudando a varrer das paradas de sucesso a revolução grunge pesada e traumática que botou uma nuvem escura para sobrevoar a música jovem daquele finalzinho dos anos 1980. O britpop, do qual o Pulp foi um dos pilares, devolveu ao orgulho britânico a criatividade da música pop. E passou a ser relevante não apenas na música, mas também no cinema, na literatura e nas artes plásticas.
No meio dessa retomada, Jarvis e a banda que fundou e comandou lançavam a música “Common People”, em 1995, um hino do britpop mais falado do que cantado, cuja letra narrava a historinha de uma rica garota grega que queria viver “uma vida normal”, ser uma pessoa “comum”, estudando artes em Londres. Tanto na canção quanto na vida real, Jarvis foi realmente o cara que, quando estudou em uma famosa escola de arte e design, levou a amiga gringa abastada para um rolê em supermercados, para comprar rum e Coca-Cola e encher a cara ouvindo música num apartamento pequeno que ficava em cima de uma loja. Jarvis construía, assim, uma versão sonora do “turismo de classe”, que era uma espécie de tendência entre os jovens “rebeldes” da Europa naqueles tempos.
Mas Jarvis não foi e não é só o Pulp. Ele exerceu, por um bom tempo, o papel de radialista na BBC e em uma rádio australiana, escreveu para o importante jornal The Guardian, apresentou programas de arte na tevê para o Channel 4, fez recentemente uns filmes com o diretor Wes Anderson e até participou da saga Harry Potter. Além disso, dublou animações para o cinema, dirigiu vídeos musicais, foi curador de poesia para um anuário das universidades de Cambridge e Oxford e é doutor honorário da Sheffield Hallam University (ele é de Sheffield) e da Central Saint Martins School of Art and Design. E também já havia lançado um livro, em 2011, um compilado de suas letras para o Pulp e seus trabalhos solo.
É hora de voltar a Good Pop, Bad Pop e à caixa de bagunças do sótão de Jarvis do começo do texto. Caixa essa que continua fazendo dele uma pessoa comum-nada-comum. O livro de memórias que sai agora no Brasil é uma obra inteligente e, na mesma medida, engraçada. Objetos e itens “comuns”, que ele guardou em uma caixa antes de a fama chegar com o Pulp e o britpop, saem de lá para contar as histórias. São tranqueiras cotidianas (quem nunca?) colecionadas e esquecidas em um canto de seu loft em Londres, que vão desde uma embalagem de chiclete a uma caixa de Toblerone, passando por uma camiseta de uma enorme loja de departamento inglesa tipo Casas Bahia e uma versão em papelão da bolsa brega com o rosto de Margaret Thatcher, primeira- ministra do Reino Unido de 1979 a 1990.
Coisas aparentemente fúteis, daquelas que sempre levantam a dúvida: “guardo ou jogo fora?”, mas que podem catalogar uma vida toda e acabaram, no caso de Cocker, ajudando a construir seu caráter e defini-lo como o ser humano pitoresco que ele é. A brincadeira, na contracapa, é que a obra não é uma “life story”, e sim uma “loft story”; ou seja, não uma história de vida, mas a história de um loft. Mas é melhor deixar Jarvis Cocker falar.
Foto: Divulgação
De Londres, ele concedeu entrevista com exclusividade à Numéro Brasil, tanto sobre o livro, quanto sobre a continuação dele com o Pulp (Good Pop, Bad Pop termina quando Jarvis está saindo da faculdade para ir com a banda direto aos altos postos das paradas britânicas). E ainda, claro, responde por que o Pulp não tocou no Brasil em 2023, tendo se apresentado no Chile, Argentina e Uruguai.
“Eu não ia escrever livro nenhum. Mas tenho uma amiga espanhola que trabalhou anos na editora Penguin. Um dia, ela saiu para virar agente literária e me ligou: ‘Posso ser sua representante’. Tempos depois ela me liga sugerindo um livro de memórias minhas. Achei a ideia mais ou menos, mas concordei, até porque achei que ia demorar para isso acontecer, de eu ter que fazer um livro. No dia seguinte a essa conversa, ela torna a me ligar, dizendo que tinha fechado um acordo para o livro, por um bom dinheiro. Eu pensei: ‘Puts, agora vou ter que escrever’.”
“Na verdade, Good Pop, Bad Pop ganhou um formato que eu não esperava. Eu estava escrevendo uma biografia normal. Não tão normal assim, porque o nome que eu ia dar a ela era This Book Is a Song [“Este Livro é Uma Música”], e o processo criativo seria escrever não capítulos, mas versos, refrãos. Entreguei uma espécie de resumo de tudo o que eu pretendia escrever no livro, nessa coisa de versos e refrãos. O episódio das memorabílias estava lá, nesse resumo. Um dia me ligaram e disseram: esquece tudo o que você está fazendo há uns dois anos e passe a escrever o livro na perspectiva desses objetos esquisitos que você guarda em casa. No começo eu achei estranho, não sabia se necessariamente tinha gostado da ideia. Mas topei. Hoje eu tenho certeza de que foi a melhor solução.”
“Acho que os editores perceberam em mim uma coisa para a qual eu não ligava tanto. Ou achava que não era tão importante para mim como na verdade é, que são as coisas que eu guardo há anos em casa. Lembranças que eu podia muito bem jogar fora, mas nunca o fiz. Porque é exatamente isso: elas são muito importantes para mim. Então foi natural contar parte dessa minha história através das bobagens que eu boto dentro de uma caixa há anos, tipo um pedaço de sabonete que eu guardei porque a fábrica dele mudou o design do rótulo e me deixou muito decepcionado – acho que cheguei a mandar uma carta para eles, reclamando. Anos depois, eu me perguntava: por que eu guardo isso? Mas não joguei fora nunca. Hoje, escrevendo o livro, percebi o quanto aquela raiva nonsense tinha tudo a ver com o estilo de design que eu estava passando a gostar quando era mais novo e que, anos depois, iria até estudar sobre o assunto.”
“Acabei me divertindo em mergulhar nessas coisas aparentemente banais que eu vi que faziam parte da minha personalidade. Porque as coisas íntimas a mim, que de uma certa forma contavam minha história, eu botei em música, que era o que eu sabia fazer. Mas, de repente, os objetos que eu guardei também sabiam contar sobre mim coisas que eu nem sabia que seriam capazes”.
“Fico contente que ele vai sair em português. Ele foi traduzido para o alemão, italiano, e espanhol primeiro por causa do México; os mexicanos têm uma coisa comigo e com o Pulp. Ele não saiu em francês ainda, não sei por quê. Eu morei tantos anos em Paris, me envolvi bastante com a cena cultural. Sei lá. Eles devem estar cansados de mim por lá.”
“Já comecei a escrever a sequência desse livro. Não sei se vai ser o capítulo final. O negócio é que, quando fechamos esse formato dos objetos para o Good Pop, Bad Pop, achei que ia contar tudo ali. Fiquei uns cinco anos escrevendo o livro, atrasando um monte de ‘prazos finais’ da editora, e não tinha chegado ainda aos anos 1990, quando o Pulp estourou [a banda foi formada em 1978 em Sheffield, mas ganhou notoriedade nacional, mundial até, com o quarto disco, o His ‘n’ Hers, de 1994, já na era britpop]. Percebi que o incidente em que eu caí da janela quando estava tentando impressionar uma menina, em 1985, e me fez passar semanas num hospital, e depois quando eu entrei na Central Saint Martins, eram momentos tão importantes da minha vida que eu precisava fechar aquele ciclo ali. Era, na verdade, o começo da sensibilidade pela qual as pessoas iam me conhecer depois. Então achei bom parar esse livro por ali.”
“Eu não sei por que não tocamos no Brasil no ano passado. Quando vi o desenho da turnê sul-americana, o Brasil estava na tour. Descobri aí na América do Sul que não nos apresentaríamos no país. A gente vai continuar a série de shows neste ano. Vai ter uma turnê nos EUA, inclusive. Quem sabe podemos repetir o show que fizemos em São Paulo (2012) certa vez. Tocar no Rio seria interessante também.”
Foto: Tom Jackson