08 Exclusivo: Silvia Venturini Fendi e o valor da transparência

Exclusivo: Silvia Venturini Fendi e o valor da transparência

Moda

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Silvia Venturini Fendi é a única integrante da família ainda ativa na empresa que foi fundada em 1925 por sua avó Adele. Ao exibir a coleção do verão 2024 na nova Fendi Factory, a diretora criativa aproveita para mostrar por que não teme vestir homens com blusas translúcidas e defende a importância de revelar os processos de produção da marca.

No mercado da moda, são poucas as mulheres que escolhem e definem o que os homens vão vestir na próxima estação. Nesse universo de criação, Véronique Nichanian, na Hermès; Miuccia Prada, na Prada; e Silvia Venturini Fendi, há quase 30 anos na Fendi, são algumas dessas raras figuras femininas capazes de subverter convenções e criar desejo no sexo oposto pelas roupas que desenham. Depois de assumir, em 1994, o cargo de diretora artística de acessórios na grife criada por sua avó, Adele Casagrande, em 1925, e assinar a quatro mãos com Karl Lagerfeld a linha masculina, Silvia começou a questionar as noções de masculinidade, com muita pele à mostra, bolsas bordadas e blusas delicadas, feitas de materiais acetinados ou translúcidos, bem antes da popularização do vestuário sem gênero.

 

A designer, hoje com 62 anos, tinha apenas 5 quando Lagerfeld foi contratado como diretor criativo da Fendi, em 1965. Como única herdeira ainda trabalhando na marca, ela cresceu no estúdio de criação ao lado do Kaiser, assumiu a direção de acessórios depois de se formar e passou a cocriar as coleções masculinas com ele, a ponto de subirem de mãos dadas à passarela para receber os aplausos ao final dos desfiles. “Penso que ele sempre achou curioso uma criança se interessar pelo trabalho no ateliê; era para lá que eu ia depois da escola”, lembra. A amizade levou a uma natural passagem de bastão quando Lagerfeld faleceu, em 2019.

 

O mais recente capítulo dessa trajetória foi escrito no último mês de junho, quando a Fendi, tradicional integrante da semana de moda de Milão, fez diferente e levou seus convidados para conhecer a coleção de verão 2024 em sua nova pelletteria, nos arredores de Florença, durante o período de realização do Pitti Uomo, maior feira de moda masculina da Itália. O projeto inovador e sustentável da fábrica de acessórios de couro, inaugurada em outubro de 2022, influenciou diretamente as roupas apresentadas entre máquinas de última geração e artesãos muito bem treinados.

 

Entusiasta da transparência, não apenas nas roupas que cria, mas também nos processos de confecção, Silvia escolheu aproximar imprensa e clientes das entranhas da Fendi e, assim, mostrar a perfeita simbiose entre homem e máquina nas etapas de criação dos artigos vendidos pela marca. Pelos janelões que envolvem o edifício terracota – cor característica da cerâmica produzida pela usina Fornace Brunelleschi, antiga ocupante do espaço – era possível avistar o paisagismo composto por ciprestes e oliveiras, entre outras espécies da flora mediterrânea. O espaço é cuidadosamente preservado pela empresa, que pretende produzir um seleto azeite com a sua assinatura nos próximos meses. “O impacto ambiental é mínimo. Utilizamos energia solar renovável e até recebemos um prêmio pelo compromisso com a sustentabilidade”, explica Silvia.

  • SILVIA VENTURINI FENDI.

    SILVIA VENTURINI FENDI. SILVIA VENTURINI FENDI.

Foto: Cortesia Fendi

“Uma coleção não é apenas um ato de criatividade, queremos também comunicar valores”, explica Silvia.

A cartela de cores da natureza abundante do entorno migrou para as roupas de perfume workwear do verão 24 da Fendi. Algumas peças receberam tingimentos com pigmentos vegetais e naturais de acácia, zimbro, hena e papoula. Esporte, alfaiataria casual e um atualíssimo crossover de gêneros ajudaram a construir a imagem final da coleção. Peças tradicionalmente femininas, como blusas cavadas, vestidos “chemisier” e releituras das icônicas bolsas Baguette e Peekaboo, lançadas por Silvia nos anos 1990 e 2000, respectivamente, completaram looks utilitários nos quais os cintos usados por artesãos para carregar ferramentas foram reinterpretados como minissaias sobrepostas a calças folgadas de alfaiataria.

 

Criar roupas para os homens, sendo ela uma mulher, jamais foi problema. “Nunca tive um vestido rosa; minha mãe sempre me vestia como um garoto quando eu era criança”, revela. “Ela estava me preparando para ser uma mulher forte”. Silvia cresceu achando natural ignorar regras e fronteiras criativas, e relembra um desses momentos, ainda pequena. Certa vez, durante um passeio com a babá, pararam diante de uma quitanda. A vendedora, ao ver a menina vestida inteiramente de preto, perguntou: “Coitadinha, ela está de luto? É órfã?”. Sem pestanejar, a babá respondeu: “Não, ela está na moda”. Eram os anos 1960, uma era revolucionária para a moda e os costumes.

 

Para Silvia, a fusão de universos é o que há de mais atual em sua concepção do que deve ser a indústria de moda, em qualquer departamento. “Os artesãos de hoje são híbridos; eles devem saber trabalhar com as mãos, mas também com as máquinas. E nós os treinamos aqui na fábrica, desde muito jovens, para que tenham a mente aberta em relação às transformações do planeta.” A ideia do desfile acontecendo enquanto os funcionários seguiam trabalhando, cada um em sua respectiva praça, vai ao encontro da sua vontade de valorizar quem faz a engrenagem girar. “Transparência é palavra-chave para o consumo do futuro. Os clientes querem verificar o que estão comprando, onde é feito, como, por quem... Quis colocar as pessoas no centro da história.”

 

Orgulhosa do que a Fendi faz hoje, a empresária faz questão de transmitir uma mensagem e, para tanto, reconhece a importância dos canais digitais. “Uma coleção não é apenas um ato de criatividade, queremos também comunicar valores. É preciso mostrar por que uma bolsa ou um sapato são considerados especiais”. Faz todo o sentido, portanto, abrir as portas da nova fábrica para o desfile. Estabelecida em um pedacinho tranquilo da Toscana, o local proporciona o ambiente ideal para os funcionários criarem os produtos sofisticados da quase centenária etiqueta. Se a avó Adele estaria orgulhosa? “Perfeccionista, ela estaria feliz de ver aonde chegamos, claro, mas certamente não hesitaria em dar muitos pitacos”.

  • Pelo olhar da diretora criativa, a coleção da FENDI para o verão 2024 questiona as antigas noções de masculinidade

    Pelo olhar da diretora criativa, a coleção da FENDI para o verão 2024 questiona as antigas noções de masculinidade Pelo olhar da diretora criativa, a coleção da FENDI para o verão 2024 questiona as antigas noções de masculinidade

Foto: Cortesia Fendi