23 O jardim de Reinaldo

O jardim de Reinaldo

Moda

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Se a moda é efêmera, assim como a flor, é preciso exaltar a beleza rebelde que há na resiliência dos 40 anos da marca de Reinaldo Lourenço, celebrados neste 2024.

Reinaldo Lourenço ainda mantém o caderno de desenhos na cabeceira da cama (a contragosto de seu analista, vale dizer). Aos 61 anos, 40 deles à frente da marca, Reinaldo (e o analista) sabem que a moda que faz muitas mulheres suspirarem é a mesma que tira seu sono à noite. “Ontem eu havia desenhado um vestido curvilíneo. No meio da madrugada, acordei decidido que não tinha que ter curva nenhuma ali. Pela manhã, liguei para o ateliê e, antes que a peça chegasse na mesa de corte, mudamos toda a modelagem”, conta. A história é apenas uma dentre uma centena das que podem ser citadas para ilustrar o quanto é firme a costura que une estilista e marca. Nas quase três horas em que recebe a Numéro Brasil em seu escritório, no terceiro andar do prédio que mantém no bairro paulistano de Pinheiros, as pétalas de organza de um protótipo de flor tridimensional e as expectativas para o potencial da nova reforma tributária se alinham com absoluta naturalidade na conversa. É que as mesmas mãos que criam vestidos trabalhados nos mínimos detalhes também cuidam com pulso firme dos negócios que nem sempre navegam em um mar de rosas. “Todos os momentos difíceis que passei com a empresa tiveram relação com o fato de que, antes, eu não sabia administrar um business. Eu queria o melhor tecido disponível, independente do preço que ele custasse”, lembra.

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Foto: Tuca Reinés

Quem conhece ou já vestiu Reinaldo Lourenço sabe que, da escolha da matéria- prima ao acabamento, nas peças que saem da fábrica em direção à butique no shopping Iguatemi, ou aos pontos de venda do atacado, a qualidade é uma obsessão. “O mundo em que vivemos tem excesso de roupas. Quero fazer menos e com mais qualidade”, afirma, refletindo sobre o futuro da marca, após quatro décadas de existência. Vem do mesmo raciocínio, sobre relevância, a bem-sucedida investida na linha que chamou de Couture, cuja estreia aconteceu em um desfile na Fundação Armando Álvares Penteado, em março do último ano, à parte da semana de moda nacional. Neste mês, ela se desdobra em uma nova coleção, que será apresentada também no formato de desfile. Dentro do ateliê, o evento é motivo de celebração – tal qual o desabrochar de uma flor, antecipado com entusiasmo por sua natureza sazonal.

 

A agitação dos quase 60 colaboradores entre o vapor que emana dos ferros de passar industriais e o barulho das máquinas de costura deixa claro que a produção para a segunda coleção Couture reserva peças de importância. “Estamos falando de um prêt-à-porter com uma elaboração muito mais sofisticada; alta-costura nós sabemos que só existe na França e, a rigor, tem de ser feita inteiramente à mão. Aqui, temos uma combinação de técnicas, feitas por máquinas e mãos”, esclarece. As mãos às quais ele se refere incluem profissionais que contabilizam quase o mesmo tempo de casa que o próprio estilista (e, talvez por essa razão, também compartilham da tal obsessão; nas palavras da gerente de produção, Nilza Docini, “para fazer esse trabalho, você não pode ser bom da cabeça”).

 

Uma das maiores preocupações de Reinaldo é a preservação da mão-de-obra especializada. “Nesses 40 anos, tivemos tempo suficiente para que os colaboradores mais antigos transmitissem conhecimentos técnicos às novas gerações que vão chegando, na faixa dos 20 anos, mas sinto que há uma falta de interesse do mercado na formação desse tipo de profissional. A mão delicada, que constrói um vestido artesanalmente durante sete, oito dias, é escassa e desvalorizada no Brasil”, opina. “Nós temos moda, mas o que precisamos é de cultura de moda”.

  • Reinaldo Lourenço vem cutivando flores em suas coleções, estação após estação. Para o inverno 2024, elas aparecem em jacquards, inspiradas pelos lustres venezianos avistados em uma viagem recente à Itália.

    Reinaldo Lourenço vem cutivando flores em suas coleções, estação após estação. Para o inverno 2024, elas aparecem em jacquards, inspiradas pelos lustres venezianos avistados em uma viagem recente à Itália. Reinaldo Lourenço vem cutivando flores em suas coleções, estação após estação. Para o inverno 2024, elas aparecem em jacquards, inspiradas pelos lustres venezianos avistados em uma viagem recente à Itália.

Foto: Tuca Reinés. Modelo: Carla Rey (Bossa MGT)

A insistência de Reinaldo nesse segmento beira a rebeldia. Em especial, dentro de um contexto fashion que ora propõe peças massificadas e sem design original, com o intuito de torná-las “acessíveis”, ora transforma looks de maior complexidade, assinatura e preço em objetos descartáveis após o clique postado no Instagram. “Somos um país jovem, nesse sentido. Se você observar o comportamento do francês com a moda, fica claro que ele se veste para si mesmo, com prazer – não acorda e escolhe uma roupa para agradar o outro em rede social”, opina.

 

Para além do savoir-faire, Reinaldo manteve outras constantes na marca ao longo dessas 40 primaveras. Entre elas está a flor, que vem sendo cultivada coleção após coleção, como um de seus principais elementos iconográficos. Sob o olhar do estilista, as flores já surgiram frondosas, vide o mil-folhas de musselina da coleção Pornô, para o inverno 2006; pop, na parceria com a Liberty of London, para o verão 2015; em buquês, recortadas em feltro, como na coleção Visita, do inverno 1999; tingidas de vermelho-sangue para enfeitar pescoços na coleção Vampiros, para o inverno 2000; e evidenciando contrastes, estampadas como rosas remixadas entre cetim e verniz, na coleção Hip Hop and Roses, do verão 2004.

 

“A flor não está apenas no DNA da marca, mas no meu. Nasci em uma chácara no interior paulista, com uma avó que não pensava em nada além de flores. Ela mantinha um jardim com todos os tipos de plantas e uma coleção especial de orquídeas”, lembra Reinaldo, que certa vez chegou a comprar dezenas de espécies da flor e enviar diretamente para a casa de seu colaborador de estamparia. Se na passarela da Couture veremos flores handmade em 3D, que mesclam diferentes pétalas de tecido acompanhando looks com dose extra de volume, na coleção de inverno 24, que acaba de chegar às lojas, o aceno botânico se dá de forma menos literal: o ponto de partida são buquês que integram peças tradicionais do décor italiano. “A ideia veio do Pedro [Lourenço, seu filho e também estilista]: em uma viagem recente a Veneza, na Itália, olhamos para os lustres venezianos de vidro colorido e trouxemos esses florais em estampas e em um trabalho com jacquard”, conta.

 

Enquanto ganham as ruas, os novos florais do estilista terão também outro destino: as peças-piloto seguirão para o acervo da marca, que passou por um processo de catalogação nos últimos dois anos, feito por um especialista em museologia. Se Reinaldo fica emocionado ao ver esse tremendo histórico reunido? “Fico feliz, mas sou mais pragmático. Não sou um saudosista. O dia que eu quero viver é o de hoje.”

  • “O mundo tem excesso de roupas. Quero fazer menos e com mais qualidade”, diz o estilista que, além do inverno 2024 (ao lado) lança este mês, com desfile, a segunda coleção de sua linha Couture.

    “O mundo tem excesso de roupas. Quero fazer menos e com mais qualidade”, diz o estilista que, além do inverno 2024 (ao lado) lança este mês, com desfile, a segunda coleção de sua linha Couture. “O mundo tem excesso de roupas. Quero fazer menos e com mais qualidade”, diz o estilista que, além do inverno 2024 (ao lado) lança este mês, com desfile, a segunda coleção de sua linha Couture.

Foto: Tuca Reinés. Modelo: Carla Rey (Bossa MGT)