Tão perto e tão longe. Tão diferentes e tão iguais. O rapper paulista Novíssimo Edgar e o produtor musical francês Frédéric Sanchez, muito maiores do que as descrições que os precedem podem indicar, nunca tinham ouvido falar um do outro. Até que aceitaram participar de uma conversa conduzida pela Numéro Brasil, que enxergou nos dois artistas (bom, eles vão falar sobre essa coisa de serem chamados de “artistas”) uma rica simbiose de dois expressivos nomes da chamada moda multimídia, que não acontece só no que você vê nas passarelas, mas também dentro de uma galeria de arte ou no que chega a você pelos ouvidos, numa peça musical. Sem falar no futuro disso tudo, a sustentabilidade da arte. Não em termos de recursos naturais, mas sim de recursos humanos mesmo. Será que eles sentem que o artista está em risco de entrar em extinção? Edgar, esse é o Frédéric. Frédéric, esse é o Edgar.
Frédéric Sanchez: Não conheço muito sobre o trabalho do Edgar, vi que ele faz algo misturando música e moda.
Novíssimo Edgar: Também não tenho muita familiaridade com sua obra, mas sei que você combina moda e música.
FS: Isso. E muitas outras coisas.
NE: Eu vou querer saber sobre essas outras coisas! Meu trabalho principal é como cantor, participo de vários festivais ao redor do mundo. Mas faço meu próprio vestuário, minhas próprias máscaras. Essas coisas chamam a atenção das pessoas, porque eu canto escondendo minha cara. Isso amplifica minha voz. Parece que as pessoas ficam pensando: “O que é isso, um africano ancestral?” Mas agora faço uma separação: artes plásticas para galerias e museus, transformando esse tipo de trabalho em performances. Quando faço música, na verdade é um estudo que eu faço sobre música pop, em que pesquiso sobre composição.
FS: Então é uma experiência completa, bem teatral, mas passando por várias áreas?
NE: Isso mesmo. Tento fazer uma mistura.
FS: Eu comecei meu trabalho musical com dois estilistas, Martin Margiela e Martine Sitbon, muito tempo atrás, no fim dos anos 80. Acho o que eu faço diferente, porque o que crio para a moda é mais para as pessoas que me chamam para fazer. É um trabalho sob comissão. Fico criando sonoridades para completar as imagens que as pessoas trazem com suas roupas. Eu elaboro uma forma alternativa de entender o que está sendo exposto. Mas também tenho meu trabalho pessoal, instalações que crio para galerias.
NE: Como sound art?
FS: Sim. Também já fiz colaborações com vários tipos de artistas, como arquitetos. Atuo em várias áreas. Mas acho que o que mais associam a mim é mesmo a música. Sempre gostei de música, desde criança, e acho que acabei criando meu estilo próprio, minhas obras, algo muito pessoal, com minha cara.
NE: Eu fiz um trabalho para o Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro, uma ópera misturada a balé. Usei máquinas de costura com microfones, mas elas seguiam uma partitura.
FS: Você colocou microfones nas roupas?
NE: Não, nas máquinas. Eu também fazia marionetes e as dava para os dançarinos. Aí o dançarino tinha uma partitura sobre o corpo da marionete – às vezes era uma cobra, um tigre, ou um humano. Ela então dançava de acordo com isso. Criava uma instrução para uma cantora lírica, e o tom de voz dela seguia os movimentos da dança.
FS: Parece uma experiência e tanto.
LR: Atualmente, o que vocês gostam de ver na arte?
FS: Na arte, eu gosto de ver as coisas simples, não muito produzidas ou técnicas. Quase uma “arte povera”. Gosto do artista outsider, que não estudou arte, mas cria sua própria linguagem. Gente que passa anos e anos pintando só porque ama fazer isso. É algo muito autêntico para mim. Passei muito tempo sem admirar pinturas, mas hoje eu voltei a observar isso, porque gosto do trabalho manual. É algo sensual, que faz você sentir algo.
NE: E o pincel pode ser como a batuta de um maestro. E eu amo pintar. É algo que traz sensações, como jazz ou música clássica.
FS: É curioso você mencionar jazz, porque eu não costumava ouvir esse gênero, mas hoje gosto muito dele. Adoro a improvisação do jazz, algo que não dura apenas cinco minutos. Fico entediado com a ideia de que a música precisa durar apenas uma faixa. Acho legal o artista criar seu próprio mundo. E acho que no jazz tem muito disso, você cria e destrói. É sensual. Eu uso meus sintetizadores e meus computadores, mas também tenho meu piano aqui. Hoje eu não tenho mais vergonha de dizer que estou criando música. Antigamente, eu não queria dizer isso, mas hoje meu trabalho está se transformando em algo mais assim... não sei. Agora me sinto mais confortável de ser chamado de “músico” ou “compositor”. Antigamente eu só queria ser chamado de “ilustrador sonoro”, porque descrevia mais o que eu fazia. Vi uma entrevista com a Joni Mitchell e alguém perguntou o que ela estava fazendo – é claro que ela é conhecida pela música, mas também faz pinturas e poesia. Ela disse que prefere a palavra “artista”, porque é mais ampla. Mas eu não me sinto confortável com a palavra “artista” também. “Compositor” pode ser legal.
NE: É muito interessante ouvir você dizer isso. Eu sempre me descrevo para os amigos como “artista frustrado”. Não consigo fazer artes plásticas, então fui para a música. Essa carreira abriu muitas portas para mim, fui para a Europa, aí fiz minha primeira exposição de artes plásticas em Paris. Aí pensei: “Opa, tem algo errado aqui”. Ali percebi que podia ser artista, que tinha um diálogo com esse mundo da arte. Tenho uma galeria no Rio de Janeiro, logo terei minha primeira exposição solo no Brasil. Em junho vou para a Serpentine Gallery em Londres. Música, mesmo, tenho só um show marcado para este ano!
FS: [risos]
NE: É bom, mas não é no Brasil que muitas dessas coisas acontecem. Os brasileiros me conhecem e perguntam: “O que você faz? Música?” O segredo é não parar nunca.
FS: Acho interessante. Meu trabalho só passou a existir para os europeus quando eu comecei a trabalhar em Nova York. Só isso fez as pessoas me darem trabalho na Europa. Dificilmente você é valorizado no seu próprio país.
NE: Sobre a reação das pessoas, adoro quando noto as expressões faciais mudando quando estão diante de um trabalho meu. Quando parece que nunca viram aquilo antes. Ou quando alguém vai falar com a pessoa durante a exposição, e ela diz: “Espera, quero prestar atenção”. Eu amo isso. Também gosto quando as pessoas dormem durante uma apresentação minha.
FS: [risos]
NE: Quando fiz umas músicas mais experimentais, vi pessoas se sentando e dormindo. Mas é uma boa reação, significa que a pessoa ficou confortável.
FS: Eu gosto quando sinto que minhas obras estão levando as pessoas a outros lugares. Mas acho que alguns têm medo disso hoje em dia. Gosto quando há uma reação forte, quando amam ou odeiam. Gostava das obras da Pina Bausch, nos anos 1980, que faziam as pessoas brigarem no fim. Também é bom quando as pessoas ficam desconfortáveis com o que você faz.
NE: Também fico feliz com essas reações fortes. Adoro quando alguém acha meu trabalho problemático. Às vezes deixar uma pessoa triste pode ser bom – na hora é ruim, mas depois será útil. Se alguém fala que não gostou de algo na minha obra, é um elogio para mim, é o início de um diálogo. Não sou dono da verdade.
FS: Quando comecei a trabalhar, eu não ouvia as coisas que eu criava. Eu dizia que o que gostava nas minhas obras é que elas eram efêmeras – apareciam e desapareciam. Então eu nunca retornava a elas. Era algo para 15 minutos, depois sumia. Mas quando a internet surgiu, foi estranho, porque tudo que eu fiz começou a ressurgir. Aí eu comecei a querer fazer coisas que não iriam desaparecer, arte para galerias. E, paralelamente, vi cada vez mais artistas querendo trabalhar com a moda e fazer obras efêmeras, o oposto do que eu passei a fazer. Aí vejo coisas como NFT e isso torna as obras muito frágeis. As pessoas dão mais valor para coisas como o número de seguidores que têm em redes sociais. As obras se tornam menos importantes. Não sei o que será do futuro. As vezes acho que é como se as obras se transformassem em vento. A internet é escrita a tinta, mas parece aquela tinta que desaparece com o tempo.
NE: Acho que é como um ciclo natural. Isso é a sustentabilidade. É como as criptomoedas e NFT – só se falava sobre isso, mas agora não têm valor nenhum. Podem voltar a ter. Uma mulher aqui no Brasil me disse: “Quando a inteligência artificial começar a limpar minha casa, aí será o futuro; enquanto só fizerem desenhos, não me representa”. Penso que as IAs podem ajudar, mas, sim, existe um medo de o artista ser extinto, assim como existe o medo de os recursos naturais serem extintos. É o capitalismo. Mas depende de como usarmos esses recursos.
FS: Edgar, qual é seu background musical? Eu conheço algumas coisas da música brasileira. Tem um disco do Caetano Veloso chamado “Estrangeiro” do qual gosto muito. Acho que tinha algo muito político na música do Brasil. Também tem aquele disco com o Gilberto Gil, “Tropicália”. Qual é sua relação com esse tipo de música brasileira?
NE: É intrínseco. Impossível me desconectar disso.
FS: Você se vê como uma continuação da Tropicália?
NE: Sim, mas de uma outra parte menos famosa da Tropicália. Me sinto mais próximo dos professores desse movimento, uma geração antes. Tento criar novos sons como o Tom Zé, Hermeto Pascoal...
FS: Sim, isso é incrível.