09 Numéro entrevista: Cat Power

Numéro entrevista: Cat Power

Cultura

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Eu não ficaria exatamente surpreso se, em minha ligação para entrevistar a cantora americana Cat Power para esta edição, do outro lado da linha virtual respondesse um outro artista dos EUA, mais veterano e mais “clássico” do que ela: um tal de Bob Dylan. De certa forma, foi ele quem atendeu.

Um dos grandes discos de 2023, que, inclusive, vai render show no Brasil em maio, dentro da programação do C6 Fest, é “Cat Power Sings Bob Dylan: 1966 Royal Albert Hall Concert”. O álbum, gravado ao vivo como o original, em novembro de 2022, recria nos mínimos detalhes o histórico disco dos anos 1960. A princípio pirata, o lendário item entrou em 1998 na discografia oficial de Bob Dylan e manteve seu título assumidamente errado, da mesma forma como ele ganhou as ruas e feirinhas de música na Inglaterra à época, e por muitos anos depois: o show foi gravado no Free Trade Hall, em Manchester, não no Royal Albert Hall, em Londres.

 

O disco de Bob Dylan é icônico porque, naquela época, o músico fazia um dos últimos shows de uma turnê tumultuada pela Europa, que foi recebida de forma hostil. Meses antes, Dylan havia começado a testar instrumentos elétricos, como a guitarra, nas apresentações ao vivo, algo que os puristas de plantão, fãs do folk de protesto raiz do cantor e compositor, nada curtiram.Em um dado momento desse show em Manchester, numa transição de set, Dylan trocou o violão pela guitarra antes de cantar a faixa Like a Rolling Stone, quando ouviu muitas vaias e um sonoro grito de “Judas” por parte de um fã. O recorte inesquecível desse importante episódio para os anais do rock foi recapitulado no show que Cat Power fez, para captar a sonoridade do disco ao vivo, lançado em novembro do ano passado. Detalhe: Cat Power escolheu o Royal Albert Hall para “corrigir” o erro pirata e recriar o disco de Dylan no “lugar certo”. Durante a gravação, alguém da plateia repetiu o “Judas” antes da performance de Ballad of a Thin Man. Cat Power resolveu responder: “Jesus”. E a história foi recontada e ampliada agora.

 

“Sim, vocês não conseguem se livrar de mim. Eu gosto tanto do Brasil. Você sabe que quase morei no Brasil em 2001, né? Procurei uma casa em Santa Teresa, no Rio. Eu tinha um amigo em São Paulo, mas eu quis ir para Santa Teresa porque conheci o lugar com esse amigo e encontrei uma casa colonial linda, com mármores originais, mangueiras, vegetação, macaquinhos, todas essas coisas. Mas acabei indo morar em Miami, onde meu melhor amigo morava”, disse Chan Marshall, a Cat Power (não, não era o Bob na call!), em entrevista para a Numéro Brasil. First things first, falando de sua futura vinda ao Brasil para o show, antes de falar exatamente dessa história de encarnar Bob Dylan e fazer disso um disco, corrigindo aspectos como gravar no lugar certo, respondendo a reclamações da plateia, etc. Porque, sim, “Cat Power Sings Bob Dylan: 1966 Royal Albert Hall Concert” não é um mero álbum de covers, coisa que ela já tem em sua discografia (“The Covers Record”, de 2000, “Jukebox”, de 2008, e “Covers”, 2022). No caso desse disco, Cat Power transformou-se em Bob Dylan.

  • Com seu novo álbum, “Cat Power Sings Bob Dylan: 1966 Royal Albert Hall Concert”, a cantora desembarca no Brasil em maio.

    Com seu novo álbum, “Cat Power Sings Bob Dylan: 1966 Royal Albert Hall Concert”, a cantora desembarca no Brasil em maio. Com seu novo álbum, “Cat Power Sings Bob Dylan: 1966 Royal Albert Hall Concert”, a cantora desembarca no Brasil em maio.

Foto: Julien Bourgeois

“Eu costumava cantar essas canções do Bob Dylan quando era menina. Queria retomar essa essência ao gravar esse disco agora. Porque era algo honesto, espontâneo”.

Mas, antes, ela continuou falando do Brasil. “Acho que as minhas melhores memórias da vida são do Brasil. Os públicos de shows são tão diferentes pelo mundo. Não estou dizendo melhor nem pior. Cada um tem o seu estilo, consigo ver isso claramente de cima do palco. O público daí é tão especial.” Pronto, agora vem a parte Cat Power enquanto Bob Dylan, quando ela descamba a falar do ídolo homenageado:

 

“Esse disco é mais que uma gravação. Eu queria que o álbum fosse uma performance. Eu me transportei para 1966 para interpretar Bob Dylan nas gravações, do mesmo jeito que eu fazia antes, nos meus shows de começo de carreira, quando eu tinha meus 20 anos e era muito tímida para estar ali diante de um público. Mas tinha que fazer. Então eu me transportava para outro lugar, para lidar com aquilo. E, ao gravar Bob Dylan, eu me imaginava em 1966 com ele, fumando um cigarro, ele ali no soundcheck comigo. Então não acho que eu estava lá nas gravações atuando como Bob Dylan. Eu estava em 1966 com ele, sentindo aquela mágica, aquela energia.

 

“E não é que eu fui estudar 1966 para regravar esse disco. Amo música. Música é parte da minha vida. Não sou acadêmica, não consigo ser. Então eu apenas me senti em 1966, e um caminho para isso foi me conectar com memórias da minha infância com a minha avó, você me entende? Eu costumava cantar essas canções de Bob quando eu era menina. Queria retomar essa essência, a essência dessa época passada, ao gravar esse disco agora. Porque era algo honesto, espontâneo. Tipo quando eu cismei quando criança que eu queria ser uma backing vocal do Michael Jackson. Era o sonho da minha vida naquele ponto. Eu achava que tinha muito potencial para aquilo, cantava todas as músicas dele como se eu fizesse parte daquilo. Foi o que eu procurei fazer agora com o Bob Dylan. Mais do que cantar no lugar dele, eu queria me sentir participando de alguma forma daquele show. Eu também não ensaiei para cantar as músicas do disco. Passei umas duas vezes, no máximo. Quando você quer pintar, você não exatamente precisa ensaiar para começar a pintar o que está imaginando. Você pode ir lá e pintar. Usei o mesmo raciocínio. O mesmo feeling.

 

“Se eu conheço o Bob Dylan? Eu me sinto da mesma família dele. Devemos ter um mesmo DNA em algum lugar. Estou brincando. Já nos encontramos algumas vezes, gosto de me sentir amiga dele. Talvez o melhor jeito seja dizer que temos uma relação amistosa. Ele sabe que eu o amo, eu sei que ele gosta muito de mim. Não sei se é uma questão de afinidade ou de respeito, ou ambos, mas nós temos uma relação de quem joga no mesmo time, sabe?” Se ele disse algo sobre o disco? “Ele não precisa dizer nada. Não é sobre ele dizer se gostou ou não. Basta ele saber que eu quis dar-lhe um presente enquanto ele está na Terra.”

  • Mais conhecida como Cat Power, Chan Marshall diz ter no Brasil as melhores memórias da vida – chegou até a procurar casas para morar no Rio.

    Mais conhecida como Cat Power, Chan Marshall diz ter no Brasil as melhores memórias da vida – chegou até a procurar casas para morar no Rio. Mais conhecida como Cat Power, Chan Marshall diz ter no Brasil as melhores memórias da vida – chegou até a procurar casas para morar no Rio.

Foto: Eliot Lee Hazel