Uma caminhada de pouco mais de 20 minutos separa a Fortes D’Aloia & Gabriel e a HOA na Barra Funda, em São Paulo. Mostrando que há mais do que um bairro em sua intersecção, as galerias se unem na mostra RAW!, que ocupa ambos os espaços até o dia 03 de agosto, entrelaçando jovens artistas a nomes estabelecidos, em um intercâmbio que percorre diferentes linguagens, mídias e abordagens. A convite da Numéro Brasil, Igi Ayedun (a artista, curadora e galerista à frente da HOA) e Márcia Fortes (co-fundadora da FDAG, da qual é sócia ao lado de Alessandra D’Aloia e Alexandre Gabriel) estabelecem um diálogo sobre aquilo que as aproxima na arte.
Numéro Brasil: Como surgiu a ideia de fazer uma exposição única, unindo as duas galerias? Foi um desejo antigo ou platônico?
Igi: Eu acho que foi mais platônico. A HOA passou por uma mudança grande do ano passado pra cá. A gente não é mais uma galeria comercial, não representa. Somos uma galeria colaborativa cujo foco está num posicionamento, de certa forma, até mais institucional, voltado para jovens artistas e para a criação de conexões com galerias estabelecidas. Na verdade, o que mudou foi que agora eu entendi que posso formalizar isso como um modelo para a HOA. Porque a gente vai crescendo, aprendendo e entendendo o que quer. Hoje, a gente não tem a pretensão de ser uma galeria comercial de sucesso ou qualquer coisa do tipo, queremos ser uma plataforma para jovens. E a Fortes já estava no topo da lista de galerias das quais a gente gostaria de se aproximar, justamente para fazer esse processo, que é apresentar novos talentos para o mercado e, a partir de galerias estabelecidas, transformá-los em jovens artistas. Eu dei início a uma conversa com a Luiza Calmon [diretora de vendas da FDAG] mas a Márcia veio com uma ideia para além das nossas expectativas.
Márcia: Pois é. A gente tem um programa no Rio que se chama Aquário. Como a galeria lá é toda de vidro, tem uma face que realmente fica de cara para os transeuntes. A gente sempre se perguntava o que colocaria nesse espaço. Aí, uma hora, resolvi formalizar esse Aquário como um projeto dedicado a artistas de fora do programa – somente novos nomes, emergentes, desconhecidos nosso público. A ideia inicial era ter a Igi indicando esses nomes. Mas decidi radicalizar geral. Pensei: vamos surpreender todo mundo, inverter as expectativas e aproveitar o fato de que nós duas estamos na Barra Funda. Tem uma conexão geográfica que a gente deveria explorar, porque o público da HOA não chega na Fortes, e o público da Fortes não chega na HOA. Mesmo estando uma ao lado da outra.
Igi: Aí eu topei muito.
Numéro Brasil: Muitas vezes, as diferenças são justamente as coisas que mais acrescentam em uma equação de soma. Indo além do olhar para o novo artista, quais outros pontos de convergência há entre vocês?
Márcia: Acho que nós duas somos boas nisso, de encontrar um talento latente, sabe? Então, acho que a gente tem esse denominador comum: um olho afiado para reconhecer um talento que, às vezes, nem emergiu ainda. Está ainda meio incubado. Por exemplo, a HOA hoje tem esse perfil, de oferecer um ateliê, um programa de residência que nada mais é que um espaço para que o jovem talento venha adquirir uma identidade, que às vezes ele ainda nem sabe que tem.
Igi: Sim, a gente conseguiu sistematizar isso ao longo desses quase quatro anos. Mas acho que foi durante o processo que eu entendi que a gente, na verdade, é bem parecida. A maior parte das galerias, em geral, é apática. A gente tem um mundo de arte contemporânea acostumado com aquele mesmo…
Márcia: …Cubo branco. A arte trata de uma linguagem original. E hoje há uma comodidade muito grande no circuito.
Numéro Brasil: É uma conveniência ou existe algum interesse em manter as coisas como elas sempre foram?
Márcia: Eu acho que o circuito, de certa forma, está um pouco rendido ao mercado. E o circuito é maior que o mercado, a arte é maior que o mercado. Acho que existe um conservadorismo muito grande hoje, entendeu? Estou nessa há uns 25 anos, já passei por milhares de feiras de arte e já vi coisas muito loucas em estandes. Hoje, é a pintura que vende. Nem a fotografia está encontrando muito o seu lugar, sabe? Então, está numa coisa muito pictórica, uma coisa muito contida. Mas eu acho que é isso: não é que as galerias sejam apáticas; temos galerias incríveis com artistas incríveis, mas o momento está conservador.
Igi: E para a gente é difícil, porque a gente surge nesse momento, em que as coisas estão mais conservadoras. Em vários momentos na HOA nós nos sentimos completamente “não inspirados” ou, às vezes, até obrigados a seguir uma coisa que já está imposta, para tentar atingir o modelo de sucesso, sabe? Então, acho que a apatia vem disso, do lugar, não do trabalho em si, dos artistas. Eu falo muito da linguagem, né? Da forma como as coisas são feitas, comunicadas, os riscos que os espaços tomam. E aí é interessante quando a gente vê galerias como a Fortes, que se importam com esse lado, sobre o qual a gente não encontra tanto acolhimento. Nesse sentido, acho que a gente têm algo em comum. São tempos diferentes, experiências diferentes, mas há uma semelhança.
Numéro Brasil: A gente falou um pouco de mercado agora e como essa confluência de novas vozes e talentos revela uma porção das galerias que está preocupada não só com a venda. Vocês acham que isso também acaba atraindo um público diferente?
Márcia: Acho que não. Acho que a pessoa que visita uma galeria de arte é uma pessoa interessada em um projeto de respiração. Essa pessoa pode ser um banqueiro, um advogado, um publicitário, o que for. Pode até ser uma pessoa mais artística que você entenderia que já teria uma atração mais natural pelo assunto. Mas eu acho que muita gente, sei lá, que vive na [Avenida] Faria Lima, frequenta uma galeria de arte porque tá a fim de respiração, tá a fim de ver coisas que quebram um sistema. Porque a arte faz coisas com a gente, né? Ou ela perturba a sua cabeça ou ela dá um arrepio. Há uma busca por prazer ou por provocação.
Igi: É que a HOA também é “cena”, né? É sobre cena. A gente tem um público majoritariamente geração Z, dos 20 aos 30 anos. Então a forma como esses jovens experienciam arte é diferente. As pessoas são muito expressivas. Elas se montam pra ir nas aberturas da HOA. A rua é um rolê, é um ponto de encontro de uma comunidade, sobretudo, queer no nosso caso. E a gente tem várias frentes: temos as exposições? Okay, legal, mas temos as nossas festas, nossos cursos… Então, como a gente trabalha simultaneamente com várias ações, faz com que se crie uma lógica de que as pessoas podem experienciar a arte de outras formas, entende? E eu acho que perceber essa questão da “cena” foi justamente o que fez eu entender que a gente não poderia ser uma galeria tradicional. Uma galeria tradicional comercial não daria conta de...
Numéro Brasil: ...de abarcar tudo isso que você me falou agora.
Igi: Exato.
Márcia: A gente tem essa pecha de galeria burguesa, entendeu? Então, tem uma certa barreira, sabe? De, tipo, “a galeria burguesa”. E, na verdade, eu acho que a nossa programação sempre disse o contrário. E a nossa lista de artistas também. Mas tem essa questão. Quando você é estabelecida, as pessoas te colocam nesse lugar, embora nosso programa sempre tenha exposto um princípio de ecleticismo.
Numéro Brasil: Acho que esse intercâmbio aqui também é uma mostra disso.
Márcia: Super! E, no final, existem diálogos completamente harmônicos.
Numéro Brasil: Para vocês, qual é a importância da ideia de intercâmbio no mundo que a gente vive hoje?
Igi: Primeiro que tem que se unir, gente. Não dá para ficar concorrendo, nem disputando. Isso é um absurdo.
Márcia: Primeiro absoluto. Porque essa ideia é muito antiga, né? É muito retrô. “O rival”, “o competidor”. A outra galeria não é seu competidor, ela é sua colega. Ela tá ali com uma proposta muito similar à sua, apesar de todas as diferenças de atuação e de representação e tal. Mas a gente sempre acreditou muito nisso, você soma e você abrange mais, né? E é assim que você amplia.
Igi: E eu acho que, globalmente, pelas poucas experiências de feiras que eu tenho – pensando nas feiras em que eu circulei com a HOA –, a gente precisa estabelecer um bloco.
Numéro Brasil: Um bloco nacional, você diz?
Márcia: Sim, porque tem uma questão de identidade, entendeu? Tem o globalismo, mas tem também a questão identitária.
Igi: Tem que ser brasileira e tem que contemplar todas as outras coisas, também. Porque é muito múltiplo. Por exemplo, eu acho que existe a problemática da inclusão, mas acho que a gente precisa entender que é sistêmico, é um problema do Brasil e uma consequência de como o Brasil foi feito e formado. E, pra mim, a HOA é muito isso. Você entende que é um problema sistêmico e não um problema individual de um agente X ou um agente Y, e você cria possibilidades de fazer com que a coisa mude para a forma operacional do mercado inteiro, e não pontualmente. Essa ideia de bloco é importante. Se você parar para ver, os africanos são organizados, os americanos são organizados, os franceses são organizados; eles entram em feiras, com 10, 15 deles. A gente tem três, quatro. Quando a gente pensa em players que são já estabelecidos, temos que pensar nas possibilidades deles também entenderem novos projetos – como a HOA e outros que ainda virão – como uma forma de renovação do mercado e das práticas. E colaborar com a gente sem precisar abocanhar a nossa identidade.
Márcia: Exatamente. É preciso fazer isso, mas sem ser de um jeito patronal.
RAW! HOA & FDAG
De 22.06 a 31.08
Fortes D'Aloia & Gabriel – Rua James Holland, 71, Barra Funda, Ter – Sex : 10h às 19h, Sáb: 10h às 18h
HOA – Rua Brigadeiro Galvão, 480, Barra Funda, Ter – Sáb : 10h às 19h