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Como escrever imagens

Arte

O diálogo entre a fotografia e as palavras da francesa vencedora do Nobel de literatura Annie Ernaux é tema para uma exposição na Maison Européenne de la Photographie, em Paris. Em entrevista exclusiva, Lou Stoppard, a curadora da mostra, fala sobre “Exteriores – Annie Ernaux e a fotografia”.

“O que é que estou desesperadamente buscando na realidade? Seria seu significado?”, escreve Annie Ernaux em Journal du Dehors (Éditions Gallimard, 1993). Ainda inédito no Brasil, o livro, cujo título poderia ser traduzido livremente para “Diário do Exterior”, traz impresso em cada página o olhar analítico da escritora sobre o cotidiano em Cergy-Pontoise, comuna a noroeste de Paris, entre 1985 e 1992. Annie expõe a ideia de que os incidentes ordinários e insignificantes que observamos ao nosso redor refletem também questões relacionadas à identidade e às hierarquias sociais da experiência individual no ambiente urbano moderno.

 

Em seus escritos, há também citações às dinâmicas de gênero, classe e desigualdades, além dos elos que mantemos com o consumo. Como a própria autora coloca, “busquei descrever a realidade como se através dos olhos de um fotógrafo, e preservar o mistério e a opacidade das vidas que encontrei”. Na mostra, sua obra dialoga com 150 imagens da coleção da Maison Européenne de la Photographie, em um recorte que compreende uma produção fotográfica dos anos 1940 até 2021. Quem assina as imagens são fotógrafos não só da França, mas também do Japão, Estados Unidos, Itália, Inglaterra e Singapura. Em Paris para a inauguração da exposição, a curadora britânica Lou Stoppard recebeu a Numéro Brasil para uma conversa sobre as relações e as divergências entre imagem e texto que integram a mostra.

  • IHEI KIMURA, Yuraku-cho, Tóquio, 1948.

    IHEI KIMURA, Yuraku-cho, Tóquio, 1948. IHEI KIMURA, Yuraku-cho, Tóquio, 1948.

Foto: Divulgação/MEP Collection, Paris

“Uma jovem garota no [trem] RER está desembrulhando as coisas que comprou: uma blusa e um par de brincos. Ela os contempla e os toca amorosamente. É uma cena suficientemente comum: felicidade em possuir algo belo, ver nosso anseio por beleza satisfeito. Tão comovente, nossa conexão com coisas”.

Annie Ernaux em Journal du Dehors

 

Qual era sua relação com o trabalho de Annie Ernaux antes de montar a exposição?

O projeto realmente começou quando eu li o livro, como fã. Já havia lido outros títulos, mais do tipo de escrita de memórias que ela faz, sobre sua família ou sua própria vida. Cheguei ao Exteriors [título do livro em inglês] logo após a obra ter sido traduzida pela editora Fitzcarraldo. Me lembro de ter um pressentimento. Pensei: “por que ninguém exibiu esses textos?”. Annie já havia feito menções sobre como ela tenta escrever como se estivesse tirando fotografias. Além disso, fiquei intrigada com a paixão crescente do público leitor por Annie – entre os jovens, há uma associação muito forte com a escrita dela. Parecia que toda vez que eu pegava o metrô em Londres, via jovens de 20 ou 30 anos, muitas vezes mulheres, lendo seus livros. E isso foi fascinante para mim, porque aconteceu em 2021, antes de ela ganhar o Prêmio Nobel [de Literatura, em outubro de 2022].

  • SUDA ISSEI, Nabari, 1977, parte da série Fushikaden (1971-1978).

    SUDA ISSEI, Nabari, 1977, parte da série Fushikaden (1971-1978). SUDA ISSEI, Nabari, 1977, parte da série Fushikaden (1971-1978).

Foto: Divulgação/MEP Collection, Paris

“‘Vá para casa!’, o homem diz ao seu cachorro; ele foge, submisso, culpado. A expressão é a mesma usada ao longo da história para crianças, mulheres e cães”.

Annie Ernaux em Journal du Dehors

 

Enquanto leitora, como você enxergou a relação dela com a fotografia?

Annie menciona a fotografia em muitos de seus livros, de maneiras muito diferentes. Às vezes, ela está se referindo a fotos suas. Às vezes, está se referindo às suas próprias memórias. Ela costuma dizer coisas na forma de imagens. Exteriors é fascinante para mim porque me parece que ela quer que suas próprias palavras, suas próprias cenas, sejam imagens. Mais tarde, conhecendo Annie, pude falar com ela sobre seu trabalho. Particularmente, sobre sua forma de registro e de observação, essa maneira de permitir que as coisas transcendam sua natureza efêmera – uma ideia que definiu completamente as imagens que escolhi. Ela tem um tipo de interesse por espaços ou comunidades que são muitas vezes ignorados ou descartados como banais. Essa ideia de vida cotidiana e o processo de ver e se envolver com ela. Algo universal.

  • MARIE-PAULE NÈGRE, Jardin du Luxembourg, Paris, 1979.

    MARIE-PAULE NÈGRE, Jardin du Luxembourg, Paris, 1979. MARIE-PAULE NÈGRE, Jardin du Luxembourg, Paris, 1979.

Fotos: Divulgação/MEP Collection, Paris

  • AN-PHILIPPE CHARBONNIER, Où qu’c’est qu’elle est passée?, Carrefour, Villiers-en-Bière, 1973.

    AN-PHILIPPE CHARBONNIER, Où qu’c’est qu’elle est passée?, Carrefour, Villiers-en-Bière, 1973. AN-PHILIPPE CHARBONNIER, Où qu’c’est qu’elle est passée?, Carrefour, Villiers-en-Bière, 1973.

Fotos: Divulgação/MEP Collection, Paris

Li que você chegou a questionar se é necessário ter uma câmera para ser um fotógrafo.

Bem, acho que é isso que estou tentando fazer com a exposição, questionar determinados hábitos de pensar sobre o que é uma imagem. E eu acho que isso é uma coisa interessante para se pensar no momento em que estamos agora. Eu tive muito cuidado para ter certeza de que era uma homenagem a ela, adequada ao seu trabalho, mas também adequada aos seus leitores. É algo louco, ela significa muito para seus leitores. E acho que eles também se sentem bastante vistos por ela, falando sobre o tema da observação.

  • JOHAN VAN DER KEUKEN, Rue de Rivoli, 1957, parte da série Paris Mortel.

    JOHAN VAN DER KEUKEN, Rue de Rivoli, 1957, parte da série Paris Mortel. JOHAN VAN DER KEUKEN, Rue de Rivoli, 1957, parte da série Paris Mortel.

Fotos: Divulgação/MEP Collection, Paris

Há cenas retratadas nas fotografias que parecem fazer um aceno à moda, de maneira indireta. Como você vê isso?

Temos muita fotografia de rua presente na exposição. De certa forma, é uma mostra sobre a relação entre texto e fotografia. Por outro lado, é uma espécie de exposição de fotografia de rua. E há, é claro, moda na rua. Quando falamos de moda, observamos que há muitas imagens de compras acontecendo, porque Annie é fascinada por lojas – principalmente supermercados – e qualquer forma de consumo. Há cenas externas com vitrines, outras de pessoas durante o ato de comprar coisas ou fazendo o cabelo.

 

E, afinal, como foi conhecer a autora pessoalmente?

Acho que ela é uma verdadeira inspiração para muitas pessoas, e é muito calorosa como pessoa. Poder conversar com ela sobre o projeto deu à mostra muito poder. Transformou tudo. Sem contar que Annie tem uma risada incrível – e eu amo uma risada alta e cheia de personalidade.

  • BERNARD PIERRE WOLFF, Shinjuku, Tóquio, 1981.

    BERNARD PIERRE WOLFF, Shinjuku, Tóquio, 1981. BERNARD PIERRE WOLFF, Shinjuku, Tóquio, 1981.

Fotos: Divulgação/MEP Collection, Paris

“As luzes e a atmosfera pegajosa da estação Charles-de-Gaulle-Étoile. Mulheres estavam comprando joias no pé das escadas rolantes gêmeas. Em outro corredor, no chão, em uma área marcada por giz, alguém havia rabiscado: ‘Para comprar comida. Eu não tenho família’. Mas o homem ou mulher que havia escrito isso foi embora, o círculo de giz estava vazio. As pessoas evitavam passar perto dele”.

Annie Ernaux em Journal du Dehors

  • ANINE NIEPCE, Restaurant époque 1900. Le garçon de café, 1957.

    ANINE NIEPCE, Restaurant époque 1900. Le garçon de café, 1957. ANINE NIEPCE, Restaurant époque 1900. Le garçon de café, 1957.

Fotos: Divulgação/MEP Collection, Paris