Alexandre Herchcovitch tem vivido uma série de reencontros. Com a marca que leva seu nome, com os amigos que acompanharam o início de sua carreira, com a maneira de criar moda e de fazer roupa, como 30 anos atrás: botando a mão na massa, à frente de um ateliê pequeno. A roupa vem primeiro, num processo de obsessão silenciosa por acabamentos, tecidos e costuras; a moda chega por consequência. Vendida em 2016 para o grupo InBrands, a marca Herchcovitch; Alexandre foi retomada pelo estilista com um primeiro desfile surpresa em dezembro de 2022. Um ano depois, fechando o ciclo de retorno, Alexandre apresentou a coleção de verão como estreante na Casa de Criadores, semana de moda dedicada a estilistas avant-garde. O estilista tem revivido sua história revisitando o ontem, mas de olho no amanhã. Alexandre e Maurício Ianês, artista e provocateur radicado em Viena, na Áustria, – cuja inestimável colaboração com o estilista já dura muito tempo – uniram-se para (re)contar essa história.
EDUARDO: Você começou subersivo, fazendo roupas para Márcia Pantera, drag queen. O que seria a subversão para você a marca hoje?
ALEXANDRE: Acho que é ter voltado para a marca que fundei e vendi. Por um tempo, em entrevistas, falei que desconhecia um caso como esse — mas depois lembrei que a Jil Sander, por um período muito curto de tempo, voltou para a marca dela. Então nem posso mais falar que é um caso inédito. Há uns 15 anos, quando estava em busca de aperfeiçoar construção e costura, quando a roupa não tinha mais aquela cara de underground, desfiada e sem acabamento, falava que a subversão estava na procura por fazer a roupa mais perfeita que conseguisse. Hoje, diria que é tentar fazer tudo de novo. Estou realmente botando a mão na massa, igual. A minha estrutura atual é do mesmo tamanho que tinha em 1994, quando éramos eu, Maurício, minha mãe, uma costureira e um modelista. Quando saí da marca, oito anos atrás, tinha uma estrutura com coordenadores, equipe para a linha jeans, outra para licenciamentos, outra para o prêt-à-porter, o Maurício era um consultor full-time.
MAURÍCIO: No começo, o ateliê era na nossa casa, cortando a roupa no chão — e o carpete junto. Depois foi para essa estrutura gigante; agora, volta para uma coisa mais enxuta... Há um desenvolvimento, um processo nessa passagem, tudo mudou muito. Não só em termos de estilo, mas de requinte de acabamento, de modelagem e da internacionalização da marca. Como vê, em retrospectiva, esse processo?
ALEXANDRE: Era muito complexo. Só normalizou dez anos depois, quando começamos a vender bem no Japão; chegamos a 120 multimarcas. Houve, nesse momento, um interesse muito grande pelo que era produzido no Brasil. Foram vários movimentos, as modelos chamando atenção, a imprensa de fora vindo para cá e usando as marcas. Havia muito dinheiro para trazer jornalistas e compradores de fora. Quem viveu essa época, pôde aproveitar bem. Na minha percepção, não sobrou marca que exporta dessa maneira.
MAURÍCIO: Esperava-se que o estilista brasileiro mostrasse roupa de praia, roupa colorida, corpo à mostra. Todos esses estereótipos sobre o Brasil para exportação.
ALEXANDRE: É, ao mesmo tempo, todos os estilistas daqui estavam tentando se preparar com uma superalfaiataria, roupa de inverno, enquanto eles esperavam da gente o oposto. A primeira vez que tentamos vender em Londres, uma das lojas que comprou três vestidos de látex, falou: aqui na Europa, vocês têm que ser bons em alfaiataria. Daí fomos estudar e fazer alfaiataria. Quando chegamos, a pergunta era: mas cadê a roupa colorida, cadê o verão? E a gente ali, cheio de casacos. Foi um desencontro violento.
Nesses momentos de presença internacional, com loja no Japão, desfilando em Nova York, as pessoas achavam que ser um criador brasileiro era uma vantagem ou um ruído?
ALEXANDRE: Elas esperavam algo diferente. Mas estávamos nos preparando para competir no jogo deles. Então fazíamos a melhor alfaiataria possível na melhor lã possível. Tínhamos coleções que eram muito melhores para vender no Hemisfério Norte do que no Sul. Chegou uma época em que nós exportávamos mais do que vendíamos aqui, era uma matemática complicada. Diria que as pessoas acabaram entendendo que estavam consumindo uma marca que, por acaso, era de um estilista brasileiro — e não por causa disso. Essa busca da identidade da moda brasileira não faz sentido. Tínhamos que brigar por espaço com empresas que costuram muito melhor do que a gente, apenas porque fazem isso há muito mais tempo, e com investimentos no parque industrial. É outro tipo de business. As marcas têm um ateliê de prototipagem, que depois é reproduzido nas melhores fábricas. A malharia é na Polônia, a alfaiataria é na Itália, o tricô é na China, o lenço de seda é na França, a gravata é não sei onde. Eles vão comprando o que o mundo tem de melhor, juntam na mesma sala, e essa é a coleção. Enquanto isso, você está fazendo tudo no Brasil e precisa competir com eles, na mesma loja.
Foto: Romulo Fialdini
Esse momento de provar que se consegue fazer moda bem construída precisou acontecer aqui dentro, falando para o mercado interno, não?
ALEXANDRE: Sim, e agora, mais ainda, pois as pessoas estão consumindo muito as roupas de fora, num preço inacreditável. Não estou reclamando, afinal não posso falar que todo mundo é livre e esbravejar quando se consome moda de fora. A pessoa tem que usar o que quiser. Mas me espanta ver que há tanto mercado para a moda internacional, custando dez, vinte vezes mais do que produzimos aqui, mesmo com qualidade e roupa semelhantes.
MAURÍCIO: No começo, você comprava muitos tecidos com defeito ou sobras de lojas. Inclusive por questões financeiras, mas também por buscar algo que era único, como um tecido que fez uma prega acidental na hora da estamparia. Hoje se fala muito em sustentabilidade, mas é um interesse que já estava presente no seu trabalho.
ALEXANDRE: E a gente customizava roupa pronta, lembra? Comprávamos tricôs prontos no Bom Retiro e desfiávamos, queimávamos, rasgávamos. Nessa época, nem se pensava em sustentabilidade, não era pauta. Comprávamos tecido antigo pelo fator da exclusividade. Agora, não tem como, é diferente. Inclusive, nessa nova etapa, aconteceu algo que achei muito bom. Nesses anos que fiquei fora, a InBrands não vendeu um metro de tecido que era exclusivo da marca. Estão todos estocados, então só estou comprando e trabalhando com aquilo tudo. Estou usando botões que fiz dez anos atrás, etiquetas, não precisei mandar fazer nada. Então, sem querer, continua essa ideia.
MAURÍCIO: E houve uma época de desenvolvimento de matérias-primas muito novas em termos de fios, de pigmentação, parcerias com empresas químicas.
ALEXANDRE: Íamos às empresas e perguntávamos o que havia de novidade — não necessariamente ligada à moda, mas em áreas de saúde ou de segurança — e incorporávamos nas coleções. Isso aconteceu bem na virada de 1999 para 2000, quando havia essa conversa sobre como seria dali em diante. E, na verdade, segue tudo igual: não aconteceu nenhuma mudança radical.
MAURÍCIO: Esse interesse continua? Existem novas tecnologias aplicáveis?
ALEXANDRE: Elas existem, mas não vou desenvolver nada por agora. Quero primeiro dar um fim nessas metragens estocadas, que em alguns casos são bem pequenas. Depois vou pensar em desenvolver algo novo — com certeza, o mais reciclado e sustentável possível. Mas, mesmo com um ateliê pequeno, temos a melhor tecnologia em termos de maquinário. Estamos fazendo modelagem por computador, que é uma tecnologia muito custosa, e só empresas grandes conseguem ter, algo que não fazíamos antes. Fazemos estamparia localizada que não gasta água. Enfim, estamos tentando modernizar o que é possível. Isso nos dá a rapidez e a exclusividade que queremos passar para o cliente. Hoje, o luxo para esse cliente não é a roupa de festa: é saber quantas peças iguais foram feitas.
O que é subversivo, hoje, em Alexandre Herchcovitch? “Ter voltado para a marca que fundei e vendi”, diz o estilista. “Minha estrutura atual é do mesmo tamanho que tinha em 1994, quando éramos eu, Maurício, minha mãe, uma costureira e um modelista”.
Você falou que, da virada dos 2000 para cá, não mudou muita coisa. Há a discussão, tanto na moda como na cultura em geral, que é muito difícil apontar uma cara para os anos 2010 e 2020.
ALEXANDRE: Acho que o que colaborou para essa percepção é que, hoje, podemos ver muito mais coisas do que há 30 anos. A notícia chegava para a gente já editada. Hoje, você consegue imitar o look proposto com menos dinheiro, até com roupa que já tem no guarda-roupa. Se você pegar o short mais curto que tiver e usar com um paletó, estará com a imagem que a Prada acha que criou e apresentou na última coleção. Esse momento lhe dá mais liberdade?
ALEXANDRE: Não, sempre me senti livre para fazer o que quisesse. Até mesmo na época de auge de vendas. Tenho desfiles e coleções que foram criticadas pela imprensa e venderam bem. O segredo de eu ter continuado a trabalhar e vender foi justamente porque nós apostávamos em coisas supostamente novas, de coleção para coleção. Isso era uma faca de dois gumes, pois demorava para as pessoas entenderem uma silhueta e, na coleção seguinte, quando começavam a assimilar, eu mostrava algo totalmente diferente. Hoje, talvez eu repetisse mais da mesma silhueta para, de fato, ganhar dinheiro.
MAURÍCIO: Outra coisa que adorávamos era fazer uma coleção a partir de algo que a gente não gostava. Era um jogo, mas com consequências, como receber críticas ou, quando a coisa virava tendência, já estar em outra e perder a chance.
ALEXANDRE: Ou quando acertava na tendência, aí diziam “o Alexandre está comercial demais”! Mas, na verdade, sempre houve toda essa liberdade de poder fazer o que quisesse. Muitas das ideias vinham do Maurício e eu dava os meus inputs, ou o contrário. Era o preço de se fazer o que gosta. Por isso continuo gostando de fazer roupa. Não tenho traumas. De uma certa forma, a marca estava sempre sendo falada, e as grandes empresas queriam unir-se a ela. Pelos licenciamentos, consegui obter recursos que me deram a oportunidade de abrir lojas, mudar o ateliê, crescer a equipe. Fazia uma imagem de um lado para ganhar dinheiro de outro jeito, mais popular.
MAURÍCIO: Ainda gosta de fazer roupa mesmo?
ALEXANDRE: Eu adoro, de verdade! Se me perguntar o que mais gosto, é de pensar em acabamento, fazer correção de roupa, pensar e extrair o melhor daquele tecido. Subverter as qualidades originais, para o que ele foi supostamente feito. Eu continuo gostando demais do laboratório que faço, de corte, costura e modelagem.
MAURÍCIO: Quis perguntar se gosta de fazer roupa e não de fazer moda, pois tínhamos uma coisa de processo criativo que trabalhávamos muito bem: você vinha do processo de confecção, e muitas vezes eu chegava com coisas abstratas.
ALEXANDRE: E muitas vezes a coleção começava por um exercício de formas, depois chegávamos num tema. Lembro que, da primeira vez que pude, de fato, trabalhar com lã boa, grossa, queria desafiar aquele tecido. Então fiz vestidos, fiz tudo, nem sabia para onde ia aquela coleção — estava fazendo roupas, depois pensava nisso. Essa também é uma demonstração de liberdade: não ter uma fórmula.
MAURÍCIO: Lembro de uma coleção que começou da vontade de pregar um zíper de um jeito diferente. Todo mundo estava usando zíper invisível e você falou que queria voltar ao zíper de metal grosso, bem visível, e entender como trabalhar com isso.
ALEXANDRE: É, ele deixa de ser um aviamento para entrar na roupa feito ornamento.
MAURÍCIO: Você não gostava de zíper invisível, lembro bem.
ALEXANDRE: Mas tenho usado, viu? Amoleci. Porque tem coisa que não tem muito jeito, que o zíper não precisa aparecer ou transforma demais a cara da roupa.
MAURÍCIO: Ainda tem vontade de voltar a desfilar fora?
ALEXANDRE: Tenho, e sem medo do processo — inclusive, as pessoas mais próximas já estão me cobrando. É uma pressão na minha vida, vocês não sabem! No momento, estou fazendo coleções de prêt-à-porter e, a partir de 2024, volto a fazer dois desfiles anuais. Acredito muito no formato, pois só o fato de eu parar três meses para pensar em algo novo, respirar formas e cores, montar esse laboratório todo, me alimenta de ideias para seis meses de produtos.
MAURÍCIO: E o desfile ao vivo ainda é uma experiência que não tem substituição.
ALEXANDRE: Também acho que não. Como a roupa é invariavelmente pensada para um corpo, vê-la vestida e em movimento é a melhor conclusão do meu trabalho.
“Adorávamos fazer uma coleção a partir de algo que não gostávamos. Era um jogo, mas com consequências, como receber críticas ou, quando a coisa estourava e virava tendência, já estar em outra e perder a chance”, conta Maurício.
Como você começa os seus processos agora, nesse retorno à Herchcovitch;Alexandre, sem as provocações do Maurício?
ALEXANDRE: É um misto de vontades de formas com a matéria-prima que tenho na mão. Depois, penso em chegar a temas e coisas do gênero.
Pretendem retomar essa dupla?
ALEXANDRE: Sim, inclusive faremos um trabalho juntos em 2024. Vou montar uma exposição no Museu Judaico de São Paulo, no primeiro semestre; o Maurício está fazendo a curadoria. Ele vem para cá duas vezes e, nem falei ainda, mas estou tentando marcar algumas coisas de campanha na mesma época, para aproveitar. É um jeito de voltarmos a trabalhar juntos. E, assim, retomando como dá. Eu também tenho que mostrar para o Maurício como a estrutura é hoje. Era uma loucura, tinha muita gente para desenvolver qualquer coisa. Hoje, a equipe é menor, mas a garra é a mesma.