Em uma edição cujo tema são flores, poucas duplas dariam tão bom caldo para esta seção de bate-papo do que Paulo Von Poser e Vic Meirelles. Paulo, artista, é famoso por desenhar rosas desde os anos 1980. Vic, florista, lida com elas em decorações de festas desde a mesma época. O encontro entre eles e a Numéro Brasil deu-se em uma chuvosa Quarta-feira de Cinzas, mas não poderia ter sido mais colorido: aconteceu nos andares 23 e 24 do Farol Santander, centro cultural de São Paulo, durante a exposição “Rosa Brasileira”, que seria desmontada dali a apenas quatro dias. Com parte da curadoria feita por Paulo, contou, num andar, com obras de arte de diferentes épocas, mas cujo tema, em comum, são as rosas. No outro piso, o visitante pôde ver o impressionante acervo do artista com mais de mil itens, de tudo o que se possa imaginar com motivo rosa: de pano de prato a vaso de cristal Lalique; de capa de disco a caixa de sabonete; de imagens religiosas a shapes de skates. A expo não só provou que a rosa está por todos os lados, mas que pode ser apropriada por qualquer turma, assumindo diferentes simbologias – pense na rosa branca da paz ou nas rosas vermelhas da paixão. O pequeno mezanino que fica entre um andar e outro foi ocupado por Vic, que preparou uma instalação cor-de-rosa com galhos, cachos de coco babaçu e flores de madeira, todos pintados de rosa, arrematados por rosas de néon – o lugar transformou-se rapidamente em cenário artsy para fotos instagramáveis e, tamanho o sucesso, rendeu ao florista um convite para preparar uma montagem do tipo a cada nova estação do ano. A seguir, você acompanha a dinâmica da dupla.
PAULO VON POSER: Sempre acho que a gente se conheceu na faculdade de arquitetura, mas você diz que não.
VIC MEIRELLES: Não. Foi na pista de dança da festa do Zeca Camargo, na rua Itália, em 1982. “Quem é esse menino que tá pulando”, eu perguntei. Disseram que era o Paulo von Poser, que dava aula na Belas Artes.
PVP: Eu era assistente da Renina Katz e dava aula de desenho, como dou até hoje. Mas a você não tem o que ensinar. Você é o maior desenhista, né? Poderia estar expondo.
VM: Aí eu pensei: mas eu estudo arquitetura lá, nunca vi esse homem. Acabou que fui ser seu aluno no ateliê da rua Urussuí. E em 1983, me apaixonei. E pensei: como eu vou namorar esse homem? PVP: A gente namorou, morou junto...
VM: Você me ajudou a montar o portfólio quando me formei, em 1988. Aí fui para a Inglaterra e voltei em 1991, sem dinheiro para comer! E me ajudou de novo emprestando a garagem da casa e com o trabalho de figurino para o programa que a Rita Lee ia estrear na MTV, o TV Leezão. Nessa época, eu já sabia que não seria arquiteto, mas trabalharia com flores.
Foto: Tuca Reinés
MC: Que rosa é o Paulo e que rosa é o Vic?
VM: O Paulo é uma rosa da paz, da sabedoria, da luz, uma rosa branca ou amarela.
PVP: O Vic é uma rainbow rose, cada pétala de uma cor.
VM: Adoro. Sabe que agora está na moda uma coisa que era considerada superbrega, que é abrir as pétalas?
PVP: Sou contra. Hebe Camargo que fazia isso, ela que inventou de dobrar a pétala para fora.
VM: Agora a minha última moda é abrir a rosa, estou fazendo tudo o que disse que nunca ia fazer: misturar rosa, gérbera, antúrio, strelitzia.
PVP: Sou contra, porque fica parecendo rosa de plástico. Por que aproximar a rosa natural de uma flor de plástico?
VM: Os professores de Holambra são contra até tirar as primeiras pétalas da rosa.
PVP: Sim, porque elas são esverdeadas.
VM: Mas aí você pergunta por que as minhas festas têm cara de fresh. Porque eu limpo a flor. Quando você tira as primeiras pétalas, ela desabrocha mais bonito.
MC: Paulo é mais pelo natural?
PVP: Não existe natural, porque a rosa foi inventada. A rosa tinha cinco pétalas originalmente. E foi trabalhada pelo homem até chegar à rosa centifolia, a garden rose, que tem cem pétalas e virou moda.
VM: A menina moderna só aceita a garden rose hoje em dia [no décor das festas]. Elas olham para mim e dizem “tudo, menos rosa”. Como a rosa comum é fácil de ter, elas querem coisas diferentes, como dálias. As últimas coleções de moda falam das rosas, pode ser que voltem a ser tendência nas festas também.
PVP: Todos os grandes estilistas fizeram um perfume de rosas e uma estampa com rosas. A rosa sempre volta. E vai além de uma estampa floral.
MC: A rosa fazia parte das conversas entre vocês?
PVP: Tinha flor, sempre. Sempre teve. A arte nos conectou. Mas a flor, e o jeito como o Vic transforma ambientes com ela, não é menor do que a arte. Nosso encontro é de arte, de cor, é uma explosão criativa. Vic é um ser cromático. E tem o desenho também. Você não se lembra que a gente deu aula?
VM: A gente pegou o apartamento de uma primeira cliente minha e convidou 15 alunos.
PVP: Não eram alunos desconhecidos, eram a Gloria [Coelho], o Reinaldo [Lourenço], amigos. Foi um encontro com temas diferentes. Foi um momento muito forte, todo mundo pirou em processos criativos. Tinha música, DJ. Era avant-garde.
VM: Paulo até então só pintava nu masculino. Quando eu entrei na vida dele, e comecei a trazer flores para dentro de casa, ele se encantou com a flor.
PVP: É, minha exposição de 1986 se chamava “O Modelo e seu Pensamento”. Com a aproximação com o Vic, o tema da flor foi inevitável.
Foto: Tuca Reinés
MC: O que vocês gostariam de perguntar um para o outro?
VM: Vai você primeiro.
PVP: O Vic consegue compartilhar as coisas digitalmente de uma maneira muito eficiente, que acho que tem a ver com a flor. Se existe algo realmente cosmopolita, é a flor. Ela é inevitável. Ela fala de um aspecto da nossa alma, como seres vegetais que somos – afinal, somos fungo. O que é essa flor digital para você? Porque acho que tem uma atuação digital nesse florescimento como artista.
VM: Cresci numa fazenda de café, já fui educado vendo o pé de café, colhendo, colocando o grão no terreiro de café. Eu ficava desenhando isso, e fazia pequenos arranjos, gostava de brincar, desde cedo, de casinha de boneca. Não sei. Faço isso desde pequeno. Hoje virou tudo high-tech, posso fazer a flor via inteligência artificial, quem sabe. É natural para mim. O que aconteceu aqui, quando o Paulo me chamou [para colaborar na exposição], me deixou muito emocionado, porque eu achei que era para fazer um arranjo, e não um lugar inteiro. Minha vontade agora é virar artista, tipo uma Mira Schendel ou um Nelson Leirner. Ou um Makoto Azuma, um florista de Tóquio que vai além das flores.
MC: Você já o enxerga assim, né?
PVP: Já.
VM: Mas eu não. Acho que ainda sou muito comercial. Essa aqui foi uma experiência. E fiquei feliz porque o Farol gostou tanto que me pediu para fazer mais quatro instalações, marcando as estações do ano.
MC: E você, Vic?
VM: Que é que eu vou perguntar... Nem é pergunta. Acho que o Paulo tem que fazer uma coisa, que é voltar a desenhar homem pelado, como sempre fez. Como que eu pergunto isso?
MC: Por que você não desenha...
VM: Por que você não desenha mais nu masculino?
PVP: Vou responder de um jeito meio estranho, mas, assim, a rosa está sempre nua, né? Ela não se veste de nada. Para mim, desenhar uma rosa ou um corpo, o tipo de relação que estabeleço com o que estou observando, é parecida. Acho curioso que o corpo nu tem hoje uma carga de preconceito. Não que a rosa não tenha, mas a rosa é para todo mundo. O corpo humano está um pouco inacessível. Nessa exposição, por exemplo, não teria. Mas eu não paro de desenhar. Ano passado minha exposição foi de desenhos dos anos 1980, tinha até um desenho do Vic. Não nu.
VM: Nunca posei pelado. Mas ele desenhava os meninos pelados. Imagina eu, namorado, ficava louco de ciúmes! Agora não sou mais ciumento, mas com 24 anos eu batia na porta, berrava, era intenso.
PVP: Mas, voltando, tanto faz, hoje, para mim. Estou mais curioso com a escuta. O Vic sabe, pois ele escuta muito o que as pessoas estão falando. O artista é uma antena. Olho para a rosa dos skatistas, a rosa da tatuagem – toda vez que entro no metrô, vejo alguém com uma rosa tatuada, no braço, no pescoço. Será que agora só vou fazer nus tatuados de rosas? O Vic, como artista, transita como uma rosa: ele tem a coleção dele, tem um olhar abrangente. Ele vê muito rosas e viaja bastante, está sempre conectado com o que está acontecendo no mundo.
MC: Vocês foram importantes criativamente um para o outro?
PVP: Sim, muito, somos almas gêmeas. O Vic é atual, contemporâneo, sabe o que está acontecendo. E também somos opostos: gosto da pista [de dança], mas também sou da meditação, sou muito ligado no silêncio, no meu jardim, no meu ateliê, na beira da represa Guarapiranga, que é um lugar mágico.
VM: Com o Paulo aprendi a desenhar, olhar, estudar, ler. Aprendi muita coisa. Ainda compro revistas, ainda assino jornal no papel. Sou rápido, olho e capto o que está acontecendo. Mas me inspiro quando estou na pista de dança com música eletrônica e todas as travestis montadas ao redor. Adoro o kitsch, saía na [rua] 25 de Março comprando bichinho de pelúcia, pinguim. Outro dia encontrei uma caixa minha cheia de relógios cafonas. Comecei a gostar de kitsch na faculdade. Naquela época o Paulo vestia calça e camisa, ia em boate chique, era fino. Um dia ele me deu carona e eu me apaixonei.
PVP: Foi fácil, né?
VM: Demorou três anos! Fui aos pouquinhos. Fiquei tão apaixonado que achei que não ia conseguir me formar na faculdade porque só pensava nele. Aí terminamos por um tempo e voltamos por mais um ano. Então fui passear na Europa e descobri que ele teve um namoradinho aqui. Fiquei histérico! Pedi dinheiro emprestado à minha mãe e fui morar em Londres. Na volta é que fui usar a garagem dele, mas aí já éramos só amigos.
PVP: Amizade é muito melhor do que namoro.
VM: Muito melhor. A gente se conhece há quanto tempo?
PVP: Deixa eu ver. 1983... Quarenta anos. Mas passou rápido, né, Vic? A gente merecia mais quarenta.
VM: Ah, mas vai ter.
Foto: Tuca Reinés