O título, The New Look, poderia ser um indicativo de que se trata de uma produção sobre a história da moda. Mas, mais do que falar sobre a genialidade da construção de Christian Dior que revolucionou o guarda-roupa feminino no pós-guerra e ganhou esse nome, a série da AppleTV+, que teve seu último episódio lançado no último dia 3 de abril, trata dos dramas vividos na França ocupada pelos nazistas, especialmente (mas não só), por grandes ícones da moda. Então, espere um mélange de Segunda Guerra, espionagem, traições, resistência e, claro, também alta-costura. Com foco nas figuras de Mademoiselle Coco Chanel e monsieur Christian Dior.
Com um elenco de estrelas como Juliette Binoche (Chanel), Ben Mendelsohn (Dior), John Malkovich (Lucien Lelong), Glenn Close (Carmel Snow) e Maisie Williams (Catherine Dior), a produção de Todd A. Kessler (de "Bloodline") não se preocupa apenas em mostrar que "a criação ajudou a devolver o espírito e a vida ao mundo", como diz sua abertura. The New Look é muito mais sobre como Dior, principalmente, e Chanel transitaram nos quatro anos (de 1940 a 1944) de ocupação nazista em Paris e que escolhas se viram obrigados a fazer. Sim, há moda, produção, fotografia e figurinos belíssimos. E também drama, suspeitas e duas marcas imensas que sobrevivem até hoje.
Fotos: Divulgação/Apple
Kessler não se furta de abordar as acusações de que Chanel colaborou com os nazistas – há evidências históricas de que ela foi amante de um oficial alemão e que evocou a lei ariana para ganhar o controle da empresa que fundara com os irmãos Paul e Pierre Wertheimer, executivos da indústria de cosméticos e judeus. Suas ações, porém, de certa forma são justificadas pelo desespero para salvar seu sobrinho de um campo de prisioneiros e, a partir dali, pelo emaranhado de uma teia de pressão e chantagem. "Não é meu papel salvá-la, mas torná-la humana. Quis fazer as pessoas questionarem por que tomamos certas atitudes.", declarou Juliette Binoche, em entrevista à Numéro Brasil.
A atriz ajuda a construir a imagem de uma mulher tão genial quanto suscetível; ardilosa enquanto também alvo do machismo e do elitismo de sua época. Única protagonista francesa do elenco, ela dá vida aos humores e trejeitos de Coco, usando com naturalidade os looks marcantes de quem foi a síntese da elegância em tempos tão sombrios.
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Já o Dior de Ben Mendelsohn é uma força delicada que oscila entre a determinação de reencontrar a irmã caçula, Catherine (Maisie Williams) – membro da resistência francesa capturada e enviada pelos nazistas para o campo de Ravensbruck –, e a sensibilidade de criar para uma Paris faminta por beleza e glamour no pós-guerra. A câmera acompanha desde o início de sua carreira, quando, jovem e quase anônimo estilista, trabalhava para Lucien Lelong (John Malkovich) rodeado de colegas como Pierre Balmain (Thomas Poitevin) e Cristóbal Balenciaga (Nuno Lopes), até o reconhecimento como "ícone francês da esperança". O título vem da criação da espetacular coleção de vestidos volumosos, com cores e formas que remetem às flores do jardim de sua infância na Normandia. Destaca-se o tailleur Bar, composto por casaco de seda bege, acinturado e ombros redondos, e saia godê 40 centímetros acima dos joelhos. O conjunto, que devolveu às mulheres sua feminilidade, foi batizado pela editora da Harper's Bazaar, Carmel Snow (Glenn Close), como The New Look.
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O mérito da série é desenhar esse cenário complexo do que foi a Segunda Guerra, bordado pelo funcionamento humano em momentos de crise. "A ocupação nazista parecia eterna. Ninguém sabia quando ia terminar. Num paralelo com a pandemia da Covid, que durou muito menos, também vimos pessoas fazerem coisas idiotas e acreditarem em bobagens. Não somos melhores do que eles", pontuou Malkovich, em uma das entrevistas realizadas por Numéro Brasil com o elenco da produção. Abaixo, trechos do diálogo com Juliette Binoche e Ben Mendelsohn sobre a série, escolhas, ética e o papel da moda hoje e sempre.
DIÁLOGOS
Com Juliette Binoche (Coco Chanel)
É fascinante a forma como você construiu sua Chanel. Ela era um modelo para as mulheres que nunca foram princesas, mas sobreviventes, como ela, não?
Acho que ela pensava primeiro no que ela gostava e no que era conveniente para ela; na necessidade de ter movimento, de ser elegante, de se sentir confiante. Ela veio de um lugar muito vulnerável. Entendeu, desde cedo, que poderia misturar joias verdadeiras e falsas, que era tudo uma questão de impressão. Ela tinha senso de equilíbrio, e isso se vê na maneira como constroi suas roupas. Ela sabia que não viveria de espartilho e saia longa. Cortou o cabelo, vivia bronzeada – porque esquiava e ia à praia – e isso virou moda. Ela não impôs nada, mas começou a ser notada e tornou-se um modelo de estilo.
O curioso é que a história dela vem ainda de outra guerra.
Foi por causa dos homens que partiram para a Primeira Guerra que as mulheres precisaram ser ativas. Chanel partiu dessa necessidade para mudar as roupas femininas e depois seu comportamento. É fascinante como as coisas aconteceram e como ela se tornou uma figura revolucionária. Mas ela não pensava sobre isso, apenas vivia como queria.
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E, assim, provocou uma revolução para todas.
Diferentemente de Dior, que queria vestir poucas mulheres, Chanel queria ter suas roupas em todos os lugares. Ela achava que todo mundo deveria ser elegante. Para ela, a mulher deveria ter um estilo livre e confortável, mas elegante. E ela se construiu a partir disso.
Chanel foi acusada de colaborar com nazistas, mas a série mostra que era tudo mais complexo do que isso. Concorda?
Há nuances. Ela não tinha a moral que podemos ter hoje. Ela era alguém que, não importa o que acontecesse, sabia que tinha que sobreviver. Claro que ela escondeu isso depois da Guerra. Não era bem visto. E hoje é chocante observar algumas das decisões que ela tomou. Mas, ao mesmo tempo, entender de onde ela veio permite compreender seu comportamento. Não digo que esse é um papel confortável, mas é fascinante.
Houve algum momento no set em que você sentiu esse desconforto de forma mais intensa?
Eu estava no Maxim's, restaurante onde filmamos e que Coco frequentava. Logo na minha primeira cena, fizemos o jantar de Chanel com Himmler (Heinrich, um dos mais poderosos e temidos oficiais da SS, a polícia nazista). Achei aquela situação horrível. Não sabia como lidar com aquilo. Tive que confiar no showrunner, Adam Kessler, e no produtor executivo, Lorenzo de Bonaventura, que verificaram os fatos com especialistas e historiadores. Não havia tempo para eu fazer aquela checagem. Li, claro, tudo o que pude e algumas vezes questionei o roteiro, mas tive que confiar neles. Aparentemente, Chanel jantou com Himmler sem saber quem ele era. E é isso que está na série.
Este é um dos pontos controversos da biografia de Chanel, não?
Tudo isso diz respeito a questões de se estar em uma guerra que você não sabe quando e como vai acabar, e as escolhas que faz. Julgamos de fora, quando a história já está feita. Gosto do fato de que a série permite que estejamos no meio da ação, refletindo sobre isso. Algumas pessoas fazem escolhas controversas, não há dúvidas.
Foi difícil para você retratar essa pessoa real, que é também uma grande marca?
Por isso quis focar na humanidade dela. Não é meu papel salvá-la, mas torná-la humana para que as pessoas se questionem sobre os motivos que nos levam a certas escolhas.
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Com Ben Mendelsohn (Christian Dior)
Como foi viver Christian Dior, especialmente sem ser francês?
Ele é um heroi nacional de seu país. Então, ser um estranho nesse ambiente é muita responsabilidade e um tanto assustador. Mas alguns dos trabalhos assustadores que fiz também me fizeram crescer como ator. Eu não queria fingir que sou ele, mas entendê-lo o suficiente para traduzi-lo. Nesse ponto, tive a sorte de que poucas pessoas o conheceram na vida real. Eu quis também que este trabalho fosse uma carta de amor para Dior. Eu o amo mais do que qualquer personagem que já fiz. E isso tem a ver com a profundidade de seus sentimentos e com o fato de ele ser uma pessoa de princípios, que não sabe muito bem como agir, mas que está se esforçando ao máximo.
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É muito bonita a forma como a série mostra o amor de Dior pela irmã Catherine. Como foi atuar com Maisie Williams?
Maravilhoso. O curioso é que ela não havia sido nem considerada para esse papel. Eu amo (a série) Game of Thrones, assisti quatro vezes, e sempre me senti mais próximo da Arya Stark (vivida por Maisie) do que de qualquer outro personagem. Graças a isso, logo me conectei a ela. Mas Todd (Kessler, o diretor) não tinha visto Game of Thrones. Maisie havia sido chamada para o teste de outro papel, mas brilhou tão intensamente que foi como se se apoderasse do personagem.
Como foi fazer essa conexão entre os dois irmãos?
Dior não sabe o quanto a ama até que ela vai embora. Eles são até chatos um com o outro até que ela fica em perigo. E qualquer pessoa que viu alguém da família passar por algo terrível entende isso. Eu mesmo pensei muito na minha família.
Como você vê a moda depois de viver Dior?
De forma completamente diferente. Confesso que eu via a moda como conversa fiada, não tinha apreço ou consideração, mesmo sem entender nada sobre ela. Hoje vejo que estava errado. E fico feliz por aprender. Hoje entendo a interação entre a moda e o tempo. Vejo que é algo vital na nossa sociedade contemporânea, que está presente em todos os lugares e de muitas maneiras. E é incrível.
Fotos: Divulgação/Apple