Samuel Fosso já foi definido como um homem de muitas faces. Por meio de seus autorretratos, aos quais se dedica há quase meio século, ele assume múltiplas personalidades. Mas nas séries que estão na 22a Bienal Videobrasil, onde o artista de 61 anos expõe seu trabalho até 25 de fevereiro, é possível identificar, para além de todos os personagens, dois momentos distintos na carreira do fotógrafo camaronês.
Foto: Divulgação
As imagens de “70s Lifestyle”, realizadas entre 1974 e 1978, mostram a descoberta de Fosso das fotos produzidas fora da República Centro-Africana, onde ele vivia com o tio. Na época um adolescente, ele ficou fascinado com a moda que estampava as páginas das revistas estrangeiras e resolveu adotar as peças, de camisas justas a sapatos de plataformas e óculos escuros, para fotografar a si mesmo em poses glamourosas. Em um período marcado pelo governo ditatorial de Jean-Bédel Bokassa, quando a liberdade de expressão era bastante restrita, o fim do expediente no estúdio em que ele trabalhava, quando se via sozinho, era o momento ideal para brincar com os códigos de representação. É uma realidade bastante distinta se comparada aos autorretratos de “Fosso Fashion”, feitos em 2021, a convite de Grace Wales Bonner, para uma edição de A Magazine Curated By. Neles, Fosso aparece com roupas luxuosas assinadas pela estilista inglesa e criadas a partir da mistura dos estilos europeu e afro-atlântico.
Agora, postas lado a lado, diante do mesmo cenário (o ambiente do estúdio de 1970 foi recriado para as imagens de 2021), o que vemos é o menino que desafiava as noções de masculinidade em convívio com o artista consagrado que chegou a sonhar em ser modelo e, à sua maneira, de fato conseguiu. Os dois estão conectados, apesar dos anos que os separam, pelo espírito de liberdade que a moda sabe bem evocar. Não é à toa que, para Fosso, ela representa, junto à fotografia, uma forma de libertação, em uma relação que o fotógrafo explora em sua carreira desde sempre e, a convite da Numéro Brasil, elabora também na entrevista a seguir.
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“Quando a guerra acabou, comecei a me vestir com o estilo de que gostava e segui a moda dos anos 1970. Queria ser modelo, mas sabia que era impossível para mim. Fiz do meu jeito.”
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“Minha busca pela libertação faz com que eu me sinta muito próximo de nossos irmãos norte- americanos. Eu me vesti como eles para reivindicar os direitos dos negros. A história que nos conecta é a da opressão.”
Como você enxerga os dois trabalhos que são apresentados na Bienal Videobrasil?
Costumo dizer que faço moda do meu jeito. Isso remonta às minhas fotos dos anos 1970, e quando a Vogue Internacional pediu que eu fosse modelo [em 1999], me trouxe roupas de grandes marcas, imortalizando esse estilo por meio das minhas fotos. Mais recentemente, a estilista inglesa Grace Wales Bonner me pediu para ser modelo de suas roupas, o que fiz com muita alegria. Existe uma ligação muito importante para mim entre a moda e a fotografia, que pode ser encontrada em todas as minhas séries.
Foi por meio de fotografias em revistas que você teve contato com o estilo de artistas afro-americanos, algo que incorporou nos seus primeiros autorretratos. O que mais te impressionava neles?
Adoro a moda afro-americana, mas é principalmente por conta da sua história. Durante a Guerra de Biafra (1967-70), tive a forte impressão de que não era a nossa guerra que estávamos a suportar, mas sim uma guerra entre franceses e ingleses. Isso me levou a reflexões mais amplas sobre a opressão que os negros sempre experimentaram e a ligação entre a escravatura nos Estados Unidos, a colonização na África e a escravatura moderna que nos foi imposta após a Independência. Minha busca pela libertação faz com que eu me sinta muito próximo de nossos irmãos americanos, e me vesti como eles para reivindicar os direitos dos negros. A história que nos conecta é a da opressão. É por isso que me sinto atraído pela sua moda, pela sua estética, porque a sua história e a sua reivindicação por libertação podem ser sentidas através do seu estilo.
Você já disse que a fotografia foi uma forma de libertação e que, por meio dela, você se salvou de uma série de horrores que viveu. Qual foi o papel da moda, neste sentido?
É uma longa história que remonta à minha infância: durante a guerra, quando criança, não tinha mais roupa. Então, minha avó, que cuidava de mim naquela época, teve que tirar as roupas de alguém que havia levado um tiro para me cobrir. Quando cheguei à adolescência e a guerra acabou, experimentei a minha própria libertação interior. Comecei a me vestir com o estilo de que gostava e segui a moda da época, dos anos 1970. Amava tanto a moda que queria ser modelo, mas sabia que era impossível para mim. Por isso, fiz do meu jeito.
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